Os sonhos já não caem do céu

24 de outubro de 2012

Os sonhos já não caem do céu

Mário Mandacaru, Brand Design Manager na Brandia Central

A primeira vez que ouvi falar de alguém caindo do céu eu deveria ter uns dezesseis parcos anos, e quem protagonizava esse feito no cinema era um David Bowie igualmente muito mais novo do que é atualmente. Afinal o tempo é como os homens, voa.

Há poucos dias eu e mais uns oito milhões de pessoas acompanhámos o culminar do projeto Red Bull Stratos, que levou o austríaco Felix Baumgartner à beira do espaco sideral para que se atirasse lá de cima, no limite de ir fazer companhia ao Major Tom, o tal astronauta que Segundo David Bowie (ok, assumo que fui seu grande fã)  ainda vive deambulando pelas estrelas. “Vive” é modo de dizer…

A grande façanha que se soma aos recordes de altura de um balão manualmente pilotado; de altura de salto e de velocidade em queda livre, alcançando mais de 1300 quilómetros por hora, quebrando a barreira do som; é o fato de ter realizado isso tudo com o patrocínio de uma marca de bebida energética.

Em finais de Julho de 69, sem necessidade de cafeína em dose taurina, eu e os meus irmãos ficámos acordados até à meia noite para acompanharmos em família a chegada do homem à Lua, momento marcante da História do Homem (hoje posto em causa pela teoria da conspiração). Além da televisão não transmitir qualquer cor além do preto e do branco, não emitia também qualquer sinal relevante de apropriação daquele momento por marca alguma. As marcas mais relevantes de que me lembro então eram as da NASA, do projeto Apollo e obviamente a Star&Stripes. Só muitos anos depois vim a saber que Buzz Aldrin usava um relógio Omega no seu primeiro passeio lunar.

No mês seguinte desse mesmo ano estima-se que de cerca de duzentas mil pessoas juntaram-se para celebrar a paz e o amor numa quinta próxima à cidade de Woodstock, no estado de Nova Iorque. Se olharmos com atenção para o cartaz do evento notamos que não há uma única marca suportando a organização, o que é obviamente pertinente dada a natureza antiestablishment do movimento hippie, mas que não deixa de ser espantoso. As mais importantes bandas e músicos da altura e nem uma marca de cerveja, nem uma operadora de telemóvel (que na altura era coisa de ficção científica), nem uma marquita de cigarros, nada! Quando músicos e público deixaram o local deixaram um marco na História e um buraco de um milhão de dólares. Posteriormente, com as receitas das gravações em vinil e do filme, conseguiram quase equilibrar as contas.

Olhemos para o céu outra vez. Não estão lá os anjos e santos que enchem os tetos das igrejas pelo mundo afora, pois não? Esse sonho celestial era também patrocinado pela igreja ou indiretamente pelos mecenas que pagavam aos art directors e designers da altura para materializarem um conceito tão intangível como é uma terra de Marlboro ou o mundo sedutor da Martini. Com o agravante de que se não consumíssemos o produto, seríamos consumidos pelo fogo do inferno.

Face à inevitabilidade dessa sponsorização da felicidade coletiva, o que a Red Bull fez foi tornar-se ela própria a História, capturando a imaginação de milhões de pessoas numa ação de extreme marketing, demonstrando uma inequívoca fidelidade aos seus valores. A queda de Baumgartner elevou o conceito de Brand Experience acima das nuvens.

Estamos rendidos (presos?) ao Brand Experience, as marcas apropriara-se dos momentos marcantes da nossa vida transformando-nos em coadjuvantes dos seus ‘reclames’. Mas se não fizerem isso teríamos condições para custear os festivais de música, os jogos de futebol, as corridas de automóveis, motae e bicicletas, as maratonas e as festas da cidade? Seguramente não.

Mas é fundamental que essas experiências de marca não se fiquem pelo entretenimento vazio e consigam acrescentar algo à vida das pessoas. Um bom exemplo disso foi a criação de um hotel com 26 quartos ao ar livre num jardim no centro da cidade de Lisboa, que promoveu não apenas a socialização mas até alguma experiência de aprendizagem com workshops tão interessantes quanto pertinentes, tudo a partir de uma razão tão simples como o lançamento de um catálogo do Ikea.

É preciso pensar mais alto, sem a vertigem de não arriscar, mesmo que isso implique um grande salto. E pode ser só da cama para a relva.

p.s. falando em festivais, não posso deixar de mencionar o Boom Festival como uma exceção à regra, que consegue viver despido de qualquer marca e manter-se fiel à filosofia e aos princípios que apregoa. Sendo uma marca em si mesmo, é um exemplo de coerência a ser seguido.

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