O artesão e o burlão

14 de abril de 2014

O artesão e o burlão

João Geada, Zé da Zémaria

Dois meninos nasceram pela mesma altura do ano, na mesma cidade do mesmo país, em casas parecidas com pais e famílias do mesmo nível e estilo.

Ambos os meninos cedo deram mostras de grande desembaraço e esperteza. Nas suas escolas eram frequentemente os melhores alunos, mas enquanto um revelava um talento anormal para criar e interpretar historias, na cabeça e no papel, o outro descobriu que a posse de coisas lhe dava algum poder e na 3ª classe, já trocava os trabalhos de casa por brinquedos.

O menino criativo era um verdadeiro artesão. Tudo o inspirava a dizer coisas como nunca ninguém tinha dito, a escrever como nunca ninguém tinha escrito ou a desenhar como nunca ninguém tinha desenhado. Inventava e construía coisas como caixinhas feitas de paus de gelados e fazia de fio a pavio, completamente sozinho, um jornal sobre animais que distribuía no bairro onde vivia.

O outro menino era um burlão. Não sabemos bem porquê, mas embora fosse esperto, bem falante e encantador, jamais conseguira produzir um TPC sem um esquema para não ter de o fazer, ou passado um Teste sem usar alguém para lhe passar as respostas. Era muito competitivo mas a única coisa que realmente valorizava era parecer melhor do que os outros, embora conseguisse sempre uma maneira de o fazer sem ter realmente de o fazer.

Curiosamente, o menino artesão era considerado um arruaceiro, porque nunca, mas nunca se calava ou ficava impávido perante uma situação que abalasse as suas convicções, e como era atento e sensível, reparava demasiado nas fealdades e injustiças da vida e não hesitava em, dizer tudo o que lhe viesse à cabeça. Já o menino burlão, era considerado um anjo, ficava sempre longe das confusões, era obediente e complacente  e com o seu bonito sorriso e duas ou três palavras bem escolhidas ou com um esquema bem pensado, lá se conseguia safar de qualquer ocasião em que poderia entrar em apuros.

Os dois meninos cresceram e seguiram o percurso académico esperado para cada um deles. O artesão coleccionou bebedeiras, amigos e namoradas, manifestações e adesões a movimentos de contestação e o burlão escalou na hierarquia académica, chegando a Dux da sua Faculdade e a assistente na cadeira que todos os outros consideravam a mais difícil, mas também a mais aborrecida.

Curiosamente, foram os dois trabalhar para publicidade, o artesão como criativo e o burlão como account e um graças ao seu talento e o outro às suas infalíveis manobras, também rapidamente subiram na hierarquia das respectivas agências. Com menos de 30 anos já eram, respectivamente, Director Criativo e Director de Contas.

O artesão tinha muito talento e era muito produtivo, mas a sua rebeldia e insatisfação com os moldes, para ele muito injustos, em que assentava o desenvolvimento das sociedades, faziam dele uma pessoa pouco à vontade com as regras e limites. Muitas vezes a verdadeira vontade dos seus patrões fora despedi-lo, mas a verdade é que ele conseguia fazer trabalhos realmente fora de série e, melhor ainda, inspirava todos os outros para fazê-lo também.

Quanto ao burlão não havia nunca nada a apontar, pelo menos do ponto de vista dos seus chefes. A agência onde trabalhava não produzia trabalho de grande qualidade, mas as suas habilidosas manobras conseguiam vender quase qualquer coisa. Afinal tinha um talento, era um verdadeiro ilusionista e conseguia montar enredos tais, que transformavam a obra mais medíocre num assombro perante os olhos dos seus clientes. Dizia-se até que chegava a fazer apostas com os seus colegas, que ficavam sempre incrédulos quando as perdiam, como perdiam muitas vezes em ser seus colegas, porque o nosso burlão não tinha qualquer problema em desenvencilhar-se de qualquer um que lhe atrapalhasse as suas ambições.

Um dia calhou, o artesão e o burlão cruzarem-se na mesma multinacional, ambos na liderança da agência, o burlão na direcção geral e o artesão, na direcção criativa. Como podem imaginar, a coisa não durou muito tempo e depois de muitas discussões e desentendimentos, o artesão, não conseguindo aguentar mais toda a hipocrisia, incompetência e mediocridade que o rodeavam despediu-se desiludido. Percebeu que o que fazia realmente a diferença, não era a qualidade do seu trabalho, o esforço que junto com a sua equipa punha para de facto resolver os briefings que lhe propunham, do ponto de vista dos consumidores, que sempre havia considerado os seus verdadeiros clientes. Percebeu que o que importava era o ponto de vista dos clientes da agência e esse era sempre enviesado pela falta de conhecimentos sobre a dimensão humana da comunicação, embora o burlão vivesse bem com isto, chegando até a dizer ao artesão, ‘não faças coisas boas, faz coisas que eu consiga vender’.

O artesão, é hoje um dos muitos talentos que anda há procura de um caminho onde consiga pôr o seu talento, as suas ideias e a sua capacidade de criar coisas eficazes ao serviço de uma sociedade melhor.

O burlão continua a subir na hierarquia da sua agência multinacional.

Esta história é inteiramente ficcional, mas seja numa agência de publicidade, num banco, numa fábrica ou noutra empresa qualquer, seguramente conhece alguém assim ou que passou por algo semelhante.

Eu confesso que também sou um artesão rebelde e que me incomoda viver num mundo que valoriza muito mais o acto de vender que o acto de criar e produzir. Mesmo que a venda seja feita por burlões.

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Comentários (1)

  1. Caro JOÃO: sinto-me tentado a identificar (com nomes) os burlões e os artesões. O problema é de espaço!!! Abração.

    por: Manuel Batista,

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