Escravatura Consentida

10 de agosto de 2012

Escravatura Consentida

João Geada, King of Lalaland

Embora esteja a fazer uns dias de férias, não dispenso a consulta matinal do smartphone, que uso para dar uma vista de olhos pelo que se passa no mundo. Uma destas manhãs, ao fazê-lo, deparei com um artigo do jornal Expresso, datado de 2007, onde é descrita a sórdida história de uma designer que trabalhou para a Euro RSCG a recibos verdes, com a promessa de ser contratada quando ‘as coisas estivessem melhores’. Parece que assim ficou 3 anos até ser dispensada de um dia para o outro, enquanto descansava em casa por causa de um problema na sua gravidez, aparentemente causada pelo excesso de stress no trabalho.

Nenhum de nós fica muito surpreendido com este caso, porque todos sabemos que muitas das pessoas que trabalham nas agências de publicidade, estão em situações semelhantes ou até piores, de ‘estágios’ sem qualquer remuneração, que a maioria das outras não é aumentada há uns anos valentes, que os valores das remunerações baixaram significativamente e que, na maioria dos casos, embora exista uma enorme diferença entre os ordenados mais recentes e os mais antigos e alguns dos cargos continuem a ser bastante bem pagos, do CEO ao estafeta, ninguém faz a mais pequena ideia de como vai ser o dia seguinte.

‘O mercado é assim’, ‘É a crise’ e outras frases do género virão à cabeça de todos, mas sabemos que nesta indústria as coisas já estavam mal antes da crise, aliás o tal artigo é do ano anterior à explosão da bolha. Todos sabemos também que o mercado somos nós. Sou eu, são os senhores da EuroRSCG, são os directores de marketing, são os consumidores e a designer que foi dispensada, são muitos dos que estão agora a ler isto, logo, a culpa deste miserável estado das coisas é nossa.

A culpa é nossa quando exigimos às agências que façam mais trabalho do que faziam antes, por valores esmagados ao absurdo. A culpa é nossa quando aceitamos fazê-lo e, pior ainda, quando não alteramos a nossa estrutura e forma de trabalhar e por isso continuamos a precisar de cinco pessoas para fazer o trabalho que talvez só uma ou duas pudessem fazer. A culpa é nossa quando não somos capazes de adicionar sustentabilidade aos nossos negócios, fortalecê-los e diferenciá-los para serem capazes de ter a preferência dos clientes e fazer frente à concorrência sem andar atrás dela a saber o que ela anda a fazer apenas para fazer igual. A culpa é nossa quando aceitamos que nos explorem e que nos enganem com a conversa do ‘não pagamos nada mas fazes portfolio’ ou ‘não podemos fazer contrato agora mas fazemos assim que ganharmos uma conta grande’. A culpa é nossa quando todos sabemos o que se passa, todos odiamos o que se passa, mas todos nos mantemos calados, obedientes e agarrados a uma falsa segurança que nos esvazia de princípios.

Reconheço que tenho uma veia dramática, que tenho alguma tendência para romancear as coisas e para me deixar levar pela paixão. Sei que as coisas não estão fáceis para a maioria e que a EuroRSCG, embora seja a agência número 1 no país e continue a palmar as grandes contas disponíveis, não estará seguramente sã que nem um pêro no que toca a finanças, mas também sei que a ética, a moral, a compaixão e a honra, são valores independentes do status quo financeiro. Infelizmente tornaram-se também dispensáveis e ausentes da posse de poder.

De uma forma básica, não estamos muito longe da visão de Aldus Huxley no seu ‘Brave new world’ em que os Alfas passaram a ser quem tem (mais)dinheiro e todos os outros são escravos e escravos na pior condição possível, escravos por consentimento.

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Comentários (7)

  1. A visão é “gira” mas e pouco sensata. Qual era a alternativa? Sair? Em último caso, em tempo de crise, trabalhar é quase um luxo. Podemos sempre fazer barulho, pois concerteza, mas quem decide acaba por estar imune. Aliás, como se viu.
    Também me revolta, também estou contra e gostava que a ética e a moral fosse tido em conta…mas não deixo de compreender a inevitabilidade do comportamento da jovem que refere.

    por: Guilherme,
  2. Guilherme, eu não culpo a designer do artigo, culpo-nos a todos. Mas olha que há tantas alternativas, infelizmente passam quase todas por uma coisa que rareia por cá, espirito e sentido de comunidade. Mas Aqui ficam algumas: Associem-se e recusem trabalhar sem condições, sozinhos é impossivel, juntos o poder é vosso; Criem as vossas oportunidades, há tanta coisa por fazer, nao fiquem à espera, inventem e avancem com os vossos negócios, vejam o exemplo dos EUA; Sejam politicamente activos e interventivos, nao deixem continuar a ser os velhos a escolherem quem nos (des)governa; Sejam criativos e nao se deixem vencer por essa sensação de impotencia que não é real. Abraço.

    por: joao geada,
  3. Concordo. Embora a realidade dos EUA seja um pouco diferente da nossa, nomeadamente no que diz respeito ao apoio às empresas Start-up.
    Eu acredito que aos poucos o panorama se vá alterando, vemos o caso da iniciativa http://sopitch.com/index/ divulgada pelo Miguel Gonçalves que coloca jovens em contacto com empresários de várias empresas.
    Temos que ter esperança e muita fibra.

    Abraço

    por: Guilherme,
  4. Li o artigo do expresso. A primeira coisa em que pensei quando o acabei foi: eu, no lugar do marido da visada,teria com toda a certeza, confrontado o BILTRE, vulgo doutorzeco, e ter-lhe-ia espetado com uma cadeira na testa! Estes Srs, às vezes, é o que precisam, para acordarem. O que me espanta, é como é que tão boçais personagens chegam aos lugares de chefia, mas isso levar-nos-ia para outra conversa que não vem ao caso.
    Relativamente ao assunto em questão:
    Estes estagiários são escravos!! Não nos iludemos, são-nos literalmente, ponto final.
    As universidades “vendem-nos” e as agências compram-nos, não são mais que meras mercadorias adquiradas a preço de saldo ou a nenhum preço, exploradas até ao tutano. “É para o currículo”, dizem eles, mas esquecem-se que estou a trabalhar de graça. Se eu quisesse trabalhar de graça ia fazer voluntariado! O voluntariado é sem duvida uma experiência enriquecedora, mas não me dá de comer. Alimenta-me o espírito e a alma , mas não me alimenta o estômago!
    Os iludidos estagiários, aceitam os três meses sem receber um centavo, porque não têm outra opção (pensam eles, ou a grande maioria deles)).É assim que o sistema está institucionalizado: eu vou, sei que se vão aproveitar de mim, mas dão-me uns rebuçadinhos, como a experiência, o enriquecer o portefolio, o conhecer gente do meio e até posso ficar e receber qualquer coisita ainda que a recibos verdes.
    É a política do é assim porque é assim, o que é que posso fazer?? Estabeleceu-se esta maneira de pensar, que nos coloca letárgicos perante as injustiças referidas. Concordo inteiramente consigo, quando diz que nos temos de juntar para renunciar a este trabalho sem condições e vociferar bem alto: Basta!! Não é fácil criar oportunidades, não é fácil ter novas e boas ideias para negócios, não é fácil, mas se não tentarmos, se nos acomodarmos, se pararmos, então tudo continuará na mesma e a mudança será um horizonte inatingível.
    O meu caso é exemplo disso: estu na casa dos 30 e trabalhar na área criativa foi um objectivo que começou a ganhar forma ha uns anos. No fim do curso quis entrar no marketing, mas sem sucesso, enveredei pela área financeira e depois comercial, nunca estando totalmente satisfeito. Por inépcia minha fui deixando passar os anos, até que resolvi tentar fazer alguma coisa e mudar algo: tirei um curso de criatividade publicitária e estou a pensar fazer um curso de escrita criativa. Fui chamado para algumas entrevistas onde me ofereciam o malfadado estágio de três meses não remunerado. Não aceitei!! Still Loading…
    Só para concluir, que o texto já vai longo, dizer apenas que o João se esqueceu de no seu texto referir aquele que para mim, é o principal factor que contribui para uma escravidão consentida: o Medo.

    Cumprimentos

    por: Ricardo Matos,
  5. Perfeitamente de acordo Ricardo. Aliás, o medo tem sido sempre o maior opositor da verdadeira libertação da nossa espécie. Abraço e boa sorte.

    por: joaogeada,
  6. Nós não temos culpa… Se não fizermos nós, vai vir outro que o vai fazer e por muito mais barato. Entretanto estamos sem emprego e sem dinheiro pagar as contas…

    por: Rob,
  7. Rob, a questão é esta: preferes sem dinheiro e sem dignidade ou sem dinheiro e com dignidade?

    por: joao geada,

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