Tenho dificuldades em fazer uma apreciação económica ao que se passou durante o dia de quinta-feira, com as repercussões «sísmicas» de início da manhã. Efectivamente, o tema é, acima de tudo, político. Sinto que, por uma vez, o sentimento geral é que se trata de um problema iminentemente político, não ditado por interesses económicos ou financeiros. Daqueles que podem constituir marcos históricos, capítulos que, certamente, merecerão o interesse dos estudiosos da evolução das nações, e da geoestratégia.
Custa-me, portanto, fazer uma análise estritamente económica, e dos impactos que o Brexit terá junto das empresas portuguesas. Em termos gerais, a balança de trocas comerciais entre Portugal e o Reino Unido é-nos favorável. Qualquer coisa como pouco mais de 3 mil milhões de euros de exportações de bens versus 1,8 mil milhões de importações. No topo das exportações portuguesas para o Reino Unido figuram as Máquinas e Aparelhos e Veículos e outros Materiais de Transporte (num total de cerca de mil milhões de euros), ocupando o Vestuário a terceira posição com 300 milhões de euros exportados. Se juntarmos aqui os serviços prestados, nomeadamente Viagens e Turismo, então o volume de exportações sobe para mais de 6 mil milhões de euros face a um volume de importações de 3,2 mil milhões de euros, mantendo-se a balança favorável para o nosso país. O Reino Unido é o quarto maior destino das nossas exportações (representando 6,5% do total de vendas do nosso país ao estrangeiro) e, a relação cambial favorável (Libra/Euro) tem favorecido as nossas empresas, o que é expectável que venha a ser prejudicado num primeiro impacto, se vier a manter-se a desvalorização da Libra face ao Euro. Por outro lado, Portugal e o Reino Unido mantêm uma «velha aliança» que se estendeu da política para a materialização nas relações económicas com o longínquo Tratado de Methuen celebrado em 1703. Muitas são as empresas portuguesas que se representam no espaço britânico e, vice-versa. Por outro lado, o turista britânico continua a figurar no topo do interesse português do sector.
Não sabemos exactamente qual a dimensão do impacto, mas creio que se evoluirá para um «amaciamento» do impacto do Brexit. Uma espécie de estatuto especial de país que não é da União Europeia, mas é como se fosse para alguns interesses. Sentimento que se alastrará pelo resto do espaço da União Europeia e que porá em causa os efeitos da hegemonia do eixo franco-germânico. Há também no horizonte a negociação de acordos comerciais do atlântico norte que, desde há muito, têm vindo a ser negociados entre a Europa e os Estados Unidos. Naturalmente, o Reino Unido vai querer assumir protagonismo em matérias que digam respeito à relação com os norte-americanos.
Vale a pena recordar alguns factos que ajudam a entender a génese britânica. Existem aspetos que sempre me alertaram para que os acontecimentos desta madrugada se tornassem possíveis. E são muitos: apesar de se tratar de uma das mais importantes economias do espaço europeu, o Reino Unido não foi país fundador da CEE (entrou apenas em 1973), não alienou a sua independência monetária (mantém-se com a Libra, fora da zona Euro), não aderiu ao espaço Schengen, e a sua representação nas instâncias da burocracia europeia é desproporcionadamente menor face à sua importância. Na realidade, existe um certo cultivar de uma espécie de território europeu que não é bem europeu. Os que ficam para lá do canal mas, que teimam em afirmar ironicamente que o continente europeu está isolado quando avistam nevoeiro no horizonte.
Se a Europa anda a duas (ou três) velocidades, não é menos verdade que o próprio Reino Unido é um país dividido. Como vai ficar o tema da afirmação da independência escocesa? E como evoluirão os interesses irlandeses que, como país independente, se mantém na União Europeia, com a possibilidade já ventilada de uma possível unificação com a Irlanda do Norte? Na realidade, o Reino Unido anda a velocidades muito distintas. A geografia do voto revela que a província revoltou-se contra uma Londres cosmopolita. É uma espécie de luta de classes dos nossos tempos. É uma revolta contra as ordens política, económica e comercial. Se David Cameron sai derrotado, os defensores do sim pela permanência do Labor Party não saem menos derrotados. Cilindrados, diria. É a derrota do «royal» bloco central, uma vez mais a evidenciar-se.
Desta vez, na mais antiga democracia. Abre-se a «caixa de Pandora» do nacionalismo que, até agora, só se manifestava em bastiões da obsoleta e vista como democraticamente deficitária Europa continental. Cujos fantasmas se soltam agora por todo o lado, desde o ganhar de terreno da família Le Pen em França, dos nacionalistas da Alternativa Alemã, passando pelos ultraconservadores austríacos, húngaros e polacos. Um nacionalismo exacerbado, há muito arrumado na gaveta mas que, afinal, se solta junto dos velhos aliados de referência na conduta de libertação dos povos: os eurocépticos ingleses e os apoiantes de Donald Trump do outro lado do atlântico.
Na madrugada de sexta-feira, os «animal spirits» andam à solta. A inquietude de uma sociedade que perde referências de cidadania, de liderança e que vê todos os dias a falta de capacidade de resposta das instituições às mais elementares necessidades e legítimas ambições das pessoas. À solta estão os fantasmas do ultra conservadorismo, do nacionalismo, e dos medos que o terrorismo se encarregou de injectar num espaço de sociedade pacificada. E, a contragosto, não há notícia de uma linhagem de líderes que se constitua como um verdadeiro eixo de Ghostbusters. Porque um futuro próspero e em paz é «economicless».
A construção de uma sociedade próspera e geradora de valor, não é uma decisão económica. O valor não é só financeiro. É, sobretudo social, fruto de opções políticas e de uma visão de futuro.
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