Para sobreviver tenho de fazer mal feito

25 de junho de 2013

Para sobreviver tenho de fazer mal feito

João Geada, King of Lalaland

Comecei a fazer trabalhos de design e de publicidade com 18 anos, o que dá quase 30 anos disto. Nestas décadas, como toda a gente, fiz asneiras com que aprendi e asneiras que ainda repito. Tive sucessos e fracassos, inspirei-me naqueles que acreditei, em cada momento, serem os melhores exemplos e insistentemente, quase obsessivamente e com mais estupidez ou mais inteligência e meios, lá fui trilhando o meu caminho.

Sempre fui um bocadinho ‘à frente do meu tempo’ e tive de lutar muito para fazer as coisas como acreditava que eram bem feitas. Raramente consegui fazê-las tal e qual como as idealizava, mas lá fui ganhando algumas batalhas que me permitiram fazer trabalho de que me orgulho e que teve bons resultados para os clientes que acreditaram em mim.

Trabalhei com gente de todo o mundo, com japoneses e alemães, com nova zelandeses e australianos, com espanhóis, ingleses, americanos e indianos, escoceses, suecos e italianos, em projectos para grandes marcas, para diferentes mercados e nunca me senti inferior ou incapaz de os acompanhar. Fui premiado quase duas centenas de vezes, elogiado por alguns pelas minhas ideias e pelo meu trabalho, e fiz amigos que me respeitam por todo o lado.

Admito alguma vaidade por tudo isto e embora ache que ainda não consegui, nem de perto nem de longe, dar o meu melhor, quero acreditar que não sou doido e que percebo qualquer coisa disto. Pois o mercado da crise insiste em dizer-me que não.

Já referi várias vezes que acho que esta estúpida e interminável crise provocou um retrocesso inacreditável e que parece ter havido uma recessão na evolução que estancou também a actividade sináptica de uma imensa quantidade de cérebros. As decisões passaram do neo-cortex para o cérebro reptiliano, com todas as consequências que isso tem agora e irá ter no médio e longo prazo.

O mercado deixou de premiar o bom trabalho e passou a exigir que as coisas sejam ‘descomplicadas’, que é o mesmo que dizer, não obriguem a pensar e muito menos a correr riscos. Faz-se só para parecer que se está a fazer, de preferência da forma que dê menos trabalho. Aliás, às vezes chego a achar que o que leva esta gente a trabalhar é simplesmente o sonho de ganhar o suficiente para poder deixar de o fazer. E tudo isto está a subverter a dinâmica ‘darwiana’ da sobrevivência dos mais adaptados, fazendo crer que a prudência instintiva (vulgarmente conhecida como medo) e a consequente mediania, são a tal adaptação, retrocedendo o nosso pequeno mercado para uma coisa ao nível de mercados bebés, como o angolano, mas sem o petróleo e os diamantes.

As agências que vejo acima da linha de água, são as que aceitaram esta regressão e baixaram a qualidade do seu trabalho para níveis assustadores, o que vai levado todas as outras a fazer o mesmo na esperança de ter balões de oxigénio que lhes permita sobreviver. E embora tentemos enganarmo-nos, premiando toda a gente no festival do CCP, depois chegamos a Cannes e não passamos na prova dos nove, com o mundo a dizer-nos que estamos pior que nunca, ‘trazendo para casa’ o pior resultado nacional de que há memória.

Alguns de vocês vão dizer que aquilo é só um festival de egos e que isso depois não interessa nada na realidade dos negócios. Eu digo que há duas realidades nos negócios, a que se satisfaz em manter as coisas em modo automático, evitando surpresas e novidades, e a evolutiva que transforma o mundo ou ganha com as transformações dele. No grupo das primeiras, está a maioria das pessoas do mundo, no segundo estão pessoas como Henry Ford e Steve Jobs. Pois o Festival de criatividade de Cannes, com todas as suas feiras de vaidades, é este tipo de pessoas que celebra.

Eu também já tive de me injectar com uma dose anormal de pragmatismo, engolir todos os anos de experiência e conhecimentos e voltar a fazer como fazia com 18 anos, ou seja, mal feito, porque é isso que o mercado está a comprar e os ‘revolucionários’ também tem de comer.

Vou continuar a esforçar-me para ser excepcional, tão bom ou melhor que o David Droga, com clientes tão bons ou melhores que o Steve Jobs. Já percebi é que vai demorar muito mais tempo que alguma vez imaginei.

Espero sobreviver até lá.

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Comentários (9)

  1. Como eu o entendo… Sou programador e o que me obrigam a fazer é programar… digo obrigam porque perdi qualquer vontade de o fazer, porque perdi o brio e o perfeccionismo que já tive, porque não me pagam para fazer soluções ideais, pagam-me para fazer as soluções possíveis e mediante aquilo que o cliente paga. Neste momento o que interessa é produzir e despachar, nem que para isso a qualidade seja diminuída aos níveis da índia e da China. Basicamente temos que ser mais um país made in china que produz barato e com qualidade de trampa.

    por: Developer anónimo,
  2. Excelente, no mínimo! Totalmente de acordo. Aliás, tive também uma fase da minha vida em que senti o mesmo, que às vezes parecia que “para passar” ter-se-ia de fazer pior!

    por: Carlos Manuel de Oliveira,
  3. De facto João, tenho de te dar razão, tudo se alterou e para quem tem valores, gosta da sua profissão, tem responsabilidade e é perfeccionista, este “novo mundo”, não dá com nada, esta nova forma de encarar o trabalho, como tu dizes e muito bem em que as decisões passaram do neo-cortex para o cérebro reptiliano, com todas as consequências que isso tem agora e irá ter no médio e longo prazo, deixam-nos apreensivos, tristes e muitas vezes indignados perante as consequências a longo prazo.Parabéns pelo belo e profundo artigo, que tão bem retrata a nossa realidade de consciência laboral.

    por: Paula Gil,
  4. É o resultado da BRANDOCRACIA que estamos a viver… Chamo-lhe assim pois estamos brandos e também regulados por valores que vêm embalados e etiquetados pelas grandes corporações, prontos a comer e a expelir… nada fica, nada permance… A NÃO SER… as ideias bem construídas, os projectos feitos com pés e cabeça e a confiança nos que insistem. De qualquer forma, todo este Mundo da Publicidade e do Marketing é questionável quanto ao valor acrescentado que traz à sociedade…. Estou contigo!

    por: Rute Novais,
  5. Como eu me revejo neste texto…
    Começámos na mesma altura e realmente estes trinta anos parecem por vezes até serem penalizadores !!!

    por: Michel Mendes,
  6. Caro João,

    O teu post não me deixou indeferente porque percebo a tua dor … também estive numa posição similar. O que vou dizer não é politicamente correcto mas é a verdade.

    Percebi que no geral, salvo raras excepcções, em Portugal reina a mediocridade:

    - Porque a mediocridade é barata
    - Porque Portugal é uma aldeia de favores, cunhas e status-quo
    - Porque a mediocridade nao leva empresas à falência
    - Porque o mercado é pequeno, pouco exigente e pouco competitivo

    O meu objectivo era evoluir em termos profissionais e percebi que isso não seria possivel em Portugal.

    Vim para a Califórnia trabalhar numa das agências de referência em Analytics & Marketing.

    O que encontrei aqui foi um mundo completamente diferente. Um mundo exigente, onde a excelência é recompensada, onde existem clientes que apreciam a qualidade e estão dispostos a pagar por ela. Onde o meu trabalho tem impacto vísivel porque os números são noutra escala.

    Se um dia tiver que voltar sei que será uma adaptação difícil, acho que quem está na tua posição, ou similar, tem duas opcções:

    - Acomodar-se ao mediocre, não pensar mais nisso & play the game!. Não tentes mudar o sistema … olha o Snowden! A vida é curta.
    - Sair de Portugal.

    Espero que encontres o caminho para te sentires realizado profissionalmente.

    Abraco
    Joao Correia
    http://joaocorreia.pt

    por: Joao Correia,
  7. *neozelandeses

    por: Lino Silva,
  8. Nada acontece por acaso!
    A reformulação/libertação da criatividade é exigida para estes novos tempos.
    Não me parece mau, apenas diferente embora difícil.

    por: AnaPalma,
  9. É total e absolutamente verdade que a qualidade criativa se está a perder. Não porque os cérebros tenham deixado de produzir ideias, mas simplesmente temos no comando decisor gentinha de merda. Esta gentinha de merda, com vidinha de merda e costumezinhos e habitozinhos de merda são produto de gerações de gente que se contenta com pouco, sem ambição e sem visão de um mundo criativo. São fruto de uma “normalização” imposta durante decadas ao mundo, sempre defendida com o pressuposto de que o mundo se está a globalizar… Mas o mundo sempre foi um globo. E as pessoas não necessitavam de se imitar umas às outras… Que tristeza a minha ver (neste país em que vivo) a qualidade critica a perder-se.

    por: Hugo Dias Coelho,

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